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Monitoramento eletrônico: avanço ou retrocesso?

 

POR EDUARDO VIANA PORTELA NEVES

Enfim, parece que o Brasil passou a enfrentar algumas questões que sempre foram tratadas como dogmas pela doutrina nacional. Para minha surpresa, foi aprovado o projeto de lei que implementa o monitoramento eletrônico (PL 175/2007). Isto significa, portanto, que, embora criado como alternativa à prisão desde 1983 (EUA), só agora o monitoramento eletrônico será seriamente debatido.

Foi aprovada no último dia 20, no Senado, e encaminhada para sanção presidencial a Lei do monitoramento Eletrônico. Em uma postura ainda muito tímida, no que se refere à implementação das novas tecnologias na execução penal, o novel diploma altera o artigo 36 do CP, bem assim os artigos 66, 115, 122 e 132 da Lei de execução penal.

Após a aprovação do Senado, o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, manifestava sua insatisfação sobre o projeto:

Essa medida é algo que, num primeiro momento, nos assusta; não se pode conceber que alguém que cumpre pena possa sair da penitenciária, apenas com o dinheiro do ônibus no bolso  e uma pulseira no tornozelo – certamente, essa pessoa vai voltar ao crime, se o sistema não lhe dá qualquer acompanhamento assistencial e social.

O Estado brasileiro não pode transferir para as famílias, para a sociedade, uma obrigação que é sua, que é paga pelos nossos impostos, como contribuintes que somos

A par das discussões mais amplas que envolvem o tema, é preciso trazer à baila alguns dados que servirão de base à conclusão final deste artigo. Segundo informações consolidadas do Departamento Penitenciário Nacional, há hoje, aproximadamente, 473.626 detentos no sistema prisional brasileiro, com déficit carcerário de quase 140 mil vagas. Aliado a estes dados é preciso informar que um preso custa aos cofres públicos, por mês, em média, R$ 1,6 mil reais. Ao passo que um preso submetido ao monitoramento eletrônico, apenas para tratar do aspecto econômico, custa, em média R$ 400. Pois bem.

Sinteticamente pode-se dizer que o monitoramento eletrônico é uma alternativa tecnológica à prisão utilizada na fase de execução da pena, bem assim na fase processual e, inclusive, em alguns países, na fase pré-processual. Há, ainda, legislação admitindo, em casos de delitos especialmente graves (equivalente aos nossos crimes contra a dignidade sexual), o monitoramento eletrônico após a execução da pena privativa de liberdade. É o que determina o recém alterado código de processo penal francês (Título VII ter, art. 763-10 e seguintes[1]).

Porém, ao contrário do que se pode imaginar, a proposta de monitoramento eletrônico como alternativa à prisão não é nova, aliás, é bem antiga. Indica-se que desde 1946, no Canadá, já havia experiências de controle de presos em seu domicílio[2]. No entanto, a sua prática judicial é algo mais recente. Conforme enuncia CÉRE, a idéia partiu de uma história em quadrinhos, quando, em agosto de 1979, um magistrado americano, Jack Love, leu em um jornal local um trecho do “Homem Aranha” onde era mencionada a possibilidade de usar uma pulseira como transmissor; neste episódio, o bandido conseguiu localizar o herói graças a um dispositivo colocado em seu punho[3].

Esta ideia despertou o interesse do magistrado que, imediatamente, contratou um engenheiro eletrônico para desenvolver o sistema de monitoramento. A partir daí a medida se espalhou rapidamente por todos os estados norte-americanos[4]; quatro anos depois, mais da metade dos estados já adotavam o monitoramento.

Basicamente, três são os fundamentos para a intervenção tecnológica, dois deles já enunciados no texto: superpopulação carcerária, custos do encarceramento e, principalmente, redução da reincidência. Por outro lado, a despeito destas vantagens, também postas em dúvida, várias são as críticas dirigidas ao sistema de monitoramento eletrônico, quais sejam: violação da intimidade, excesso de punição e, principalmente, violação da dignidade da pessoa humana[5].

Talvez a única crítica que abra flanco para uma discussão metafísica, como sempre, seria a possível violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Isto porque, segundo parece bastante crível, os outros pontos favoráveis à implementação do monitoramento – redução da população carcerária e reincidência –, são objetivamente verificáveis e, portanto, empiricamente demonstráveis. Pois bem.

O grave entrave quanto à aplicabilidade do princípio da dignidade humana é determinar sua extensão. Salvo melhor juízo, o discurso contra-reformista, com seu absolutismo exagerado, contribuiu muito para a porosidade do princípio. A tentativa de absolutizá-lo teve como consequência o esvaziamento de seu conteúdo, hoje não se sabe ao certo o que fere ou não a dignidade humana. Por isto, para delimitar ao objeto deste artigo, pode-se construir um conceito negativo de dignidade humana, qual seja: catálogo de medidas que obsta o pleno desenvolvimento da autonomia humana.

Estabelecida a base conceitual, olhemos para a Constituição da República objetivando identificar e recolher quais direitos dos presos são fundamentais. Para ficar em três dispositivos, enumeremos os seguintes:
XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Pois bem, será que o Estado vem cumprindo com as determinações do núcleo intangível da Constituição? Não precisa ser nenhum criminólogo para constatar a distância entre a realidade e a teia normativa (isso para ficar na norma constitucional). Nas raras vezes em que há, através de ação civil pública, judicialização deste fato, pergunto-lhes: qual o princípio chamado à ordem para fundamentar o provimento do pedido? Para responder à indagação, colhamos trecho da seguinte decisão do TJ Mato Grosso do Sul:
O Estado não vem dando soluções razoáveis ao problema, que vem se agravando dia a dia, resultando em constantes motins, muitas vezes de difícil e cara solução, com perdas não só de patrimônio, mas e principalmente de vidas de reclusos e de servidores públicos. Não há dúvida de que as revoltas acontecem exatamente em função do tratamento desumano e indigno dispensado pelos estabelecimentos penais aos reclusos. A falta de espaço nas celas e de sanitários adequados viola o direito à vida privada, à intimidade e à própria honra da pessoa, que são conseqüências do princípio da dignidade humana, portanto violação de um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil[6].

Abrindo um pequeno parêntese, para não ficar apenas no âmbito interno, não se pode olvidar a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Conhecida como Pacto de São José da Costa Rica (1969), foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, muito embora o Brasil só tenha se submetido à jurisdição da Corte a partir de 10 de dezembro de 1998.

A CADH é o documento através do qual os Estados se obrigam a lutar contra as violações aos Direitos Humanos havidas no âmbito de suas respectivas bases territoriais, adotando ações necessárias à investigação e punição de atentados desta natureza. Ao aderirem ao Pacto os Estados assumem deveres de proteção e adoção de medidas no plano interno para tornarem efetivas os direitos e garantias estabelecidas na convenção. Não é nenhuma surpresa destacar que o Brasil já foi internacionalmente reconhecido como violador de Direitos Humanos, conforme paradigmático caso Damião Ximenes.

Disto se infere, estabelecendo uma premissa preliminar, que o nosso Poder Judiciário e a Corte Interamericana reconhecem e condenam o Estado brasileiro como violador sistemático do princípio da dignidade humana.

Por outro lado, para se estabelecer um sistema de comunicação com o princípio da dignidade humana, imperioso investigar, agora, sobre a finalidade da execução penal.

Não há espaço para dúvida quando se afirma haver uma incindível relação entre intensidade da intervenção da execução penal e interesse socializador [7]. Estes dois conceitos, ligados entre si, convivem em aparente antinomia e, por isto mesmo, conduzem a algumas discrepâncias em relação aos regimes de cumprimento de pena, ora para justificar desnecessidade de intervenção (penas de curta duração), ora para justificar seu incremento (a exemplo do RDD).

Alguns fatos ligam-se diretamente a esta antinomia, em especial, sobrecarregamento do sistema prisional e imposição do sistema de execução penal. Por hora, interessa-nos este último.

Como afirma a lei de execução penal alemã, a prevenção especial tem por finalidade possibilitar que o preso leve uma vida sem delitos[8]. Em sentido próximo, enuncia nossa legislação que a execução penal tem por finalidade “… Proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Dos dois comandos normativos se infere que objetivo primordial da execução penal é humanização da execução penal, vale dizer, colocá-la em unissonância com representações aperfeiçoadas de uma execução penal humanitária[9].

Acontece que nosso modelo de execução penal não permite a participação do condenado na escolha dos caminhos e diretrizes da execução, ou seja, há uma imposição sistêmica das regras de execução da pena privativa de liberdade.

Mas, se contrapondo a este modelo exclusivamente institucionalizado de execução de pena, fala-se em uma concepção de execução penal denominada de terapia social emancipadora. Pode-se reconhecer nesta concepção o seguinte: este conceito estimula ao máximo a idéia da execução do tratamento e ao mesmo tempo um aperfeiçoamento da concepção de terapia individual preventiva[10]. Isto demonstra que: “sem a garantia da autonomia do indivíduo submetido ao tratamento, isto é, de sua decisão livre para a aceitação, para a continuação e para as formas de terapia, só é possível um tipo deficiente de tratamento[...][11]”. Assim, só se pode falar em humanizar a execução da pena com a participação, quando possível, dos sujeitos submetidos ao tratamento.

Neste momento, é preciso agregar uma característica do monitoramento eletrônico: ele só pode ser realizado com expressa autorização do condenado. Disto depreende-se que o monitoramento se amolda a um modelo de execução penal que melhor se alinha aos ditames constitucionais e ao próprio conceito de dignidade humana, eis que evita a inocuização do indivíduo, integrando-o à uma modalidade de tratamento que evita sua inserção em um sistema prisional produtor de delinquência secundária e  reconhecidamente falido.

Deste modo, objetar o monitoramento como alternativa à inclusão do condenado em um sistema prisional falido é, verdadeiramente, negar o princípio da dignidade humana. Não se pode perder de vista, repise-se, embora silente o projeto de lei, que o monitoramento só se aplica aos condenados que a ele desejam se submeter.

De mais a mais, controle eletrônico ou controle prisional são duas graves modalidades de intervenção do Estado sobre o indivíduo, mas não se pode perder de vista que a pena, como afirmou o projeto alternativo de código penal alemão (1966), é uma amarga necessidade em uma sociedade de seres imperfeitos.

Por isto, penso que qualquer proposta que escape às discussões e transições metafísicas, ou seja, qualquer proposta que deixe de lado a retórica deslegitimadora do sistema prisional e proponha algo factível deve, ao menos, ser objetivamente considerada e concretizada. Se a medida será positiva ou negativa, um avanço ou retrocesso, só o tempo dirá! Afinal, enquanto não se chega à universalização de RADBRUCH – a melhor reforma do direito penal seria a de substituí-lo, não por um direito penal melhor, mas por qualquer coisa melhor que o direito penal e, simultaneamente mais inteligente e mais humano que ele[12]–, o monitoramento apresenta-se como uma particular afirmativa, ou seja, melhor seria se inexistisse o controle, mas, diante da amarga necessidade, é ele (o monitoramento) algo muito melhor que o encarceramento.

Especificamente sobre o projeto de lei, em minha avaliação, acredito que a aplicabilidade dos dispositivos será inexistente, fato que, aliás, não é nenhuma novidade no Brasil, notadamente tratando-se de regras de execução penal (lembrem-se, apenas para ficar em um único exemplo, do quanto disposto no art. 88, parágrafo único, “b” da Lei de Execução Penal)

De tudo quanto exposto, portanto, pode-se concluir que o fundamento que sustenta a argumentação contrária ao monitoramento é tautológico e, por isto, não pode ser cientificamente invocado. Razão pela qual optar pelo uso da “pulseira”, “bracelete” ou “tornozeleira” eletrônica – o nome é o que menos importa – é uma decisão pessoal de cada condenado que fomenta o desenvolvimento da autonomia humana. Não há por que proibir de usá-la a alguém que prefira.

Enfim, não se respeita a dignidade humana retirando-lhe, com base em mera especulação metafísica, a sua possibilidade de escolha sobre o modelo de controle que deve pesar sobre si.

Notas convertidas:
[1] Titre VII ter: Du placement sous surveillance électronique mobile à titre de mesure de sûreté.
[2] CÉRE, Jean-Paul. La surveillance électronique : une réelle innovation dans le procès pénal?. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, RJ, v. 7, n. 8, p. 105-122, jan./jun. 2006, p. 107.
[3] Ibid.

[4] “Cette idée ayant immédiatement intéressé le juge Jack Love, il prend contact avec un ingénieur électronicien, et lui demande de développer un systeme de monitoríng. En 1983 ce juge teste lui-même pendant plusieurs semaines un bracelet. II ordonne ensuite le placement sous surveillance électronique de cinq délinquants dont un violeur. Tres rapidement, le placement sous surveillance électronique se développe aux Etats-Unis, sous la forme de projets pilotes (à Washington, en Virginie, en Floride notamment). Moins de 4 ans plus tard, 26 Etats américains utilisaient le placement sous surveillance électronique”. Ibid.

[5] Para uma análise das críticas cfr. JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano; MACEDO, Celina Maria. O brasil e o monitoramento eletrônico. In:Monitoramento eletrônico uma alternativa à prisão? Experiências internacionais e perspectivas no Brasil, Brasília: CNPCP, 2008, p. 26 e ss.
[6] Ref. proc. 2006.015034-1 – TJ/MS.
[7] Não entendo adequado o termo ressocializar, pois ele pressupõe uma socialização anterior. Olhando para as classes que frequentam as engrenagens do sistema, evidente que aquela não ocorreu.
[8] Strafvollzugsgesetz – StVollzG “§ 2.º Im Vollzug der Freiheitsstrafe soll der Gefangene fähig werden, künftig in sozialer Verantwortung ein Leben ohne Straftaten zu führen (Vollzugsziel).”
[9] HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal; trad. Pablo Rodrigo Alfen. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 385.
[10] Ibidem, p. 385-386.
[11] Ibid., (negritei).

[12] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito; trad. L Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1979, 324.

Fonte: Conjur

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